A review by pedrorondulhagomes
Coração tão Branco by Javier Marías

5.0

Por vezes sentimo-nos atordoados e o culpado é um livro. É assim que me sinto após ler o ‘Coração tão branco’ de Javier Marías, o primeiro que leio do autor. A morte de um autor induz sempre um sentido de urgência sobre as leituras adiadas – foi este o caso. Talvez convoque no leitor a ideia da sua própria finitude e o apresse. Afinal, a derradeira campanha de marketing de um autor é mesmo o seu desaparecimento físico, sendo mais eficaz do que as demais, e isso deve valer alguma coisa.

Todo este circunlóquio para contornar o aturdimento. Termina-se e não sabemos bem o que acabámos de ler – mas é bom. É bom na estrutura, no estilo e no conteúdo. Se o percebemos inteiramente é um pormenor de somenos. Temos a sensação termos passado a toda a velocidade, no escuro, por objetos que apenas podemos pressentir. Isto apesar da lenta e metódica narração, com frases longas e pontuadas, num quase contínuo, sem parágrafos.

Não revelarei nada de essencial acerca do mistério que desde início, de rompante, nos apresenta: uma mulher recém-casada, regressada havia poucos dias da lua de mel, levanta-se a meio de um almoço de família, vai à casa de banho, despe a camisa e suicida-se com um tiro no peito, usando a pistola do próprio pai, que está sentado na sala de jantar. Depois disto acompanhamos a lento percurso do narrador, ele próprio recentemente casado e assombrado por pressentimentos ominosos, sobrinho da referida mulher e filho do marido desta – parece complicado, mas não é: depois do suicídio da mulher casou-se com a irmã, de quem tem um filho, o narrador.

Mas este romance é afinal acerca do quê? A intriga do género policial é apenas um expediente eficaz para manter o interesse do leitor. Mas este livro é muito mais do que isso – sem desprezar de forma alguma o género policial. Não vos consigo explicar de forma concisa acerca do que trata este romance. Isto sem cair numa série de lugares-comuns ou chavões ocos. Consigo, no entanto, encadear algumas das idiossincrasias apresentadas em jeito de filosofia:

Obrigamos os outros amarmo-nos. Numa relação amorosa, um deles ama mais do que o outro. Não quer dizer que os dois não se amem. Mas um deles ama mais do que o outro. E por isso obriga o outro a amá-lo da mesma forma. O outro pode ter dúvidas de toda a ordem, pode hesitar em querer ter uma “vida a dois”, em abdicar de parte de sua independência ou individualidade, e poderia eternizar-se nestas dúvidas – o que seria insustentável para o primeiro; quiçá para o mundo em geral. Ao primeiro não resta outra hipótese senão coagir o segundo. Nunca sabemos exatamente se a mão que nos segura o ombro nos guarda, tranquiliza, agarra ou se se ampara.

Todos os acontecimentos se sobrepõem e apagam. A desorientação poderá ser tal que a certa altura nos poderá parecer indiferente o que já foi ou o que será. Ocultamos os acontecimentos através da narração. O seu relato transforma-os num símbolo, transforma-os em linguagem e deixam de existir. Um segredo nunca deixa de existir para o seu portador. Torna-se, mais tarde ou mais cedo, insuportável.

As palavras têm sempre retração. O que é realmente feito é irremediável. A imaginação evita muitas desgraças. Ao longo do romance é por diversas vezes citada Macbeth de William Shakespeare – começando pelo título: “My hands are of your color; but I shame \\ To wear a heart so white.” A culpa, a retração, ou não, do que foi dito, do que foi ouvido e já não pode deixar de o ser. De quem é o coração tão branco?


A escrita de Marías é muito particular e marcada. Costuma-se dizer que um escritor deve desaparecer da sua obra. Mas o que quer isto realmente dizer? Aquilo a que chamamos a voz do escritor tem de lá estar e é imediatamente reconhecível – tal parece ser o caso com Javier Marías. O que se dispensa é o excesso (de julgamento moral, explicação ou interpretação) que poderá resultar no fecho da obra sobre si mesma. E a literatura é exatamente o contrário disso; a sua beleza reside na diversidade de interpretação e de apropriação pelo leitor.